Blog do Emanuel Mattos

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O fascinante mundo de Dennis D.

Finalizei o livro que me dei de presente de Natal. São 206 páginas de uma obra magnífica: “O Filho do Hipnotizador e outras histórias de estranhas pessoas”.


Seu autor, Dennis D. paulistano da gema, além de escritor, é músico e pintor. Um talento superlativo.

Alguns títulos dos contos são por demais instigantes: "Lili - a verdadeira história da mocinha condensada", "Uma empada chamada Elsie", "A bonequinha do Barão de Jaborandi", "Um certo Gato Ridente", "Eu li no Rádio", "O demônio tem asas brancas", "O despertar do macaco de barro", "O marido do Grande Chefe", "A velha de saia curta", "O lobisomem de L'Abernoise", "O anãozinho Bento Pinto", "As loucuras sexuais do Marquês de La Réglette" (um injustiçado!), "Uma vingança em Si Menor", "O sábio conselho do Dr. Caligut", "Se digo o que digo... é porque te adoro!", "Morte no Carrossel", "A virilha esquerda do jovem marido surdo".

É impossível deixar de se emocionar com a altíssima qualidade dos textos, a densidade das histórias e impactar com os finais surpreendentes de enredos fantásticos criados por sua imaginação fértil.

Dennis teve uma infância e adolescência povoada de livros – herdou uma biblioteca com cerca de sete mil exemplares. O resultado se constata ao ler os admiráveis contos em seu blog. E os dois livros: "O Filho do Hipnotizador" e Patinando com o Alter Ego”.

Nada do que leu compara a Prost. “Quantos homens e mulheres, agora mortos, pousaram seus olhos nas palavras de Marcel Proust, nas frases tão perfeitas, tão encantadoras, escritas àquele tempo das carruagens?”, questiona de forma instigante no prefácio.

Dono de fina ironia, revela em conversas virtuais aspectos de sua vivência cômica ou mesmo trágica. Como o Papai Noel pedófilo, um senhor de família tradicional que apanhou até se mijar ao ser descoberto. Ou um frade dominicano que lhe tascou um inacreditável beijo na boca no colégio onde estudava. Ou a perda do melhor amigo, Zeca, em acidente de moto quando ele se dirigia a seu encontro.

“A vida nos empurra para a descrença total no ser humano”, filosofa Dennis, que trocou a casa e a biblioteca imensa pelo apartamento no 13º andar da capital paulista, onde escreve reflexões notáveis.

“Não sei se há vício ou vulgaridade em toda escritura, mas sei que lidar com palavras atrai fantasmas de sentimentos, fantasmas de emoções assustadoras que vagueiam por aí, nos desvãos da quarta dimensão, a procura de um ser humano que esteja com a caneta entre os dedos ou, como é o meu caso, diante do teclado de um computador. E quando esses fantasmas se achegam... não há exorcismo que os afugente; a única alternativa que sobra ao ficcionista é a de entregar-se inteiramente ao seu ofício de criar novos mundos, novas pessoas e novas histórias.”

Ele já é bastante conhecido pelo impressionante blog que possui: "Dennis On The Net", onde enfeitiça – e cativa – graças aos contos notáveis e músicas que executa – muitas delas de sua própria autoria. Disciplinado, todas as noites tem aulas de música com um severo professor. Ao lapidar esse dom, produz obras belíssimas, disponíveis às visitas de bom gosto.

Seu blog figura entre os que o jornalista Ricardo Noblat recomenda. “Dennis D. escreve textos originais, regrava músicas, seleciona boas imagens e joga isso tudo em um blog muito bacana”, elogia Noblat.


Apenas como registro: o primeiro blog de Dennis D., criado em 2001, chamava-se "Caderno Mágico". Pode-se constatar que ali já esbanjava toda sua virtuose.

“O Filho do Hipnotizador” reúne 54 contos de tirar o fôlego. É um ato de amor à arte de escrever. Reproduzo o final do prefácio: “Assim é o universo da literatura ficcional: dadivoso, pleno de sensibilidade, rico de inesperados contrastes, um mundo que se recria todos os dias, bastando que exista um escritor disposto a escrever e um leitor disposto a ler”, sintetiza Dennis.

A fim de matar a cobra e mostrar o pau, tomo a liberdade - que não me foi concedida pelo autor (que, aliás, desconhece as inconfidências cometidas nesse post) – e reproduzo na íntegra o conto da página 81.


Optei por ter sido dos que mais me fascinou pela riqueza da narrativa "cujas escrituras permanecerão íntegras, legíveis, e contarão histórias fantásticas aos bisnetos dos nossos netos, e aos filhos deles, e aos que vierem depois", como diz no prefácio. Eis o conto:

"A puta que não pariu"

(ambientado nos anos 40 e no tempo atual)

Três jovens irmãs viviam num sobrado de esquina. O pai, modesto mestre-escola apaixonado pelos mitos greco-romanos, batizara-as com os nomes das três Graças, filhas de Zeus: Tália, Eufrosina e Aglaia.


Não tinham mãe, pois essa morrera de tifo, em 1928, algumas semanas depois de ter bebido um refresco preparado com xarope de orchata e – disse alguém - servido em caneca mal lavada. Também não tinham avós, nem tios, nem tias, nem primos em qualquer grau. Havia um padrinho aqui, duas madrinhas ali – é verdade – mas deles as meninas só recebiam cartões decorados com relevos de purpurina, nos aniversários e à época do Natal.


Tália, a mais velha, gostava de ler e de fazer cálculos aritméticos. “Quero ser professora e dirigir um grande colégio para moças!” – ela costumava dizer ao pai, que então suspirava satisfeito.

Eufrosina, a do meio, vivia a rir e a fazer bolos recheados com geléias. Seus prazeres moravam nas mesas bem postas, cobertas de iguarias afogadas em caldas de açúcar. “Quero ser doceira fina!” – Eufosina afirmava risonha, ao que o pai dava de ombros, indiferente.

Aglaia, catorze anos, era a mais bela das três, e também a mais graciosa, aquela que – por um dom natural – caminhava com leves passinhos de ninfa. Em segredo, para realçar ainda mais a formosura que Deus lhe dera, passava papel de seda vermelho nos lábios e escurecia os cílios com pozinho de carvão. Certa vez, quando estava a ajeitar rosas brancas num jarro verde, o pai lhe perguntou: “E tu, Aglaia, o que pretendes ser nesta vida?” Sem desviar os olhos das flores, ela respondeu, assim, naturalmente: “Puta! Quero ser puta!”

A bofetada a fez cair e rolar para debaixo da mesa. Assustada, Aglaia ergueu os braços trêmulos entrecruzados, para tentar proteger a cabeça. O pai se desfez de toda e qualquer piedade, quando desferiu o primeiro chute naquele ventre macio. Um, dois, três... foram nove chutes fortes, e o décimo só não veio porque um riachinho de sangue serpenteou no tapete.

Às oito da noite o doutor Azevedo cruzou a porta alta do sobrado. Depois de examinar a mocinha desfalecida, fez duríssimas recriminações ao mestre-escola. Condenou-o pela surra brutal que aplicara à filha, ameaçou levar o fato ao conhecimento do delegado, dr. Heliosmar Vasconcelos e, por fim, proferiu a frase mais terrível: “É muito provável que esta sua menina tenha perdido a capacidade de gerar filhos!”

O primeiro homem de Aglaia foi Hefaístos, o serralheiro. Não era macho bonito, nem feio, mas carregava consigo um cheiro só dele: de solda derretida e também de ferro em brasa. Aglaia deu-se a ele com todo o gosto, com a volúpia passiva de uma vaca no cio, que abre as carnes gulosas, molhadas frementes, para acolher o seu primeiro boizinho. Deu-se sem cobrar nada, não exigiu presentes, nem favores, mas foi assim apenas naquela vez. Das outras vezes, dava-se em troca de um par de brincos, pulseiras de contas de vidro, dois metros de cetim duchese, um batom carmim inglês...
Hefaístos fazia-lhe todas as vontades, todas, todas, até mesmo a de levá-la à zona de meretrício, onde Aglaia quisera ir para aprender a arte da fornicação galante.

Martha Debussy, velha rameira amasiada com um gigolô argentino, fizera-se sua professora mais competente. “Abra um pouco, assim, Aglaizinha, com o dedo indicador na borda, e depois solte de uma vez, com graciosidade! Não esqueça de abaixar o queixo e de sorrir timidamente! Vamos, faça tudo outra vez, mas agora sem afobações!” E mais: “Coloque esta ameixa na boca e role-a com a língua, lentamente, bem lentamente, sem babar!” E ainda: “Pouco antes de o cliente entrar, mastigue dois cravos-da-índia, a fim de perfumar o hálito. Nunca passe perfume pertinho da gruta, que amarga o gosto! Um lenço de musselina jogado sobre o quebra-luz é indispensável, mas sempre em tons de rosa, laranja ou vermelho – que realçam a beleza da pele – jamais em tons de azul, verde ou violeta, o que resultaria num aspecto cadavérico. Enquanto o cliente veste as calças, faça carinha tristonha e pergunte-lhe, sussurrando, quando o verá outra vez. Nunca toque diretamente em dinheiro diante de um cliente, mesmo que este seja mocinho sem barba. Indique um porta-jóias ou uma mesinha ao lado da cama, para que lá seja deixada a quantia. Lembre-se: apenas as putas polacas, as putas de cais de porto, as ordinárias, metem o dinheiro no rego das tetas – coisa anti-higiênica e de péssimo gosto.” Por fim: “Siga meus conselhos, pombinha branca, e você será a mais rica entre as nobres putas deste nosso Brasil.”

Três velhas irmãs ainda vivem naquele sobrado de esquina. Tália, a mais idosa, enterrou o marido e dois filhos homens. Os netos moram nos distantes grotões do Paraná. Os bisnetos, ela jamais os viu, a não ser por uma fotografia que já se fez gasta e engordurada. Contas, há muito não as pode fazer, pois a senilidade engoliu-lhe toda a memória das tabuadas.

Eufrosina, a do meio, não é sequer a sombra da mulher rotunda que fora na juventude. O diabetes roubou-lhe as carnes e a visão do olho esquerdo. Nunca se casou, mas teve uma filha a quem cobriu de mimos, e que depois sumiu no mundo, sem dizer adeus. Eufrosina ainda tem boa mão para os doces, e sabe fazer licores, e vinhos de frutas, e uma deliciosa champanha caseira. Vez por outra, lembra-se da filha perdida, chora três dias sem parar... depois esquece.

Aglaia poderia estar na Europa, vivendo em castelos, cercada de luxos... mas ficou no Brasil para cuidar das irmãs e dar-lhes uma velhice confortável. Sua fortuna, incalculável, brotada dos duzentos bordéis que espalhou entre Belo Horizonte e São Paulo cresce sem parar a cada pôr-do-sol. Ninguém mais a chama de Aglaia, e sim de Abigail Barbosa Leite, em cuja bela figura mal se adivinham sete décadas de fornicação galante.

Quando o relógio do salão bate cinco horas, suas alunas se achegam, uma após outra, trazendo cada uma delas um botão de rosa mais fresco, mais perfumado. Dona Abigail, a mestra generosa, sorri, aspira o perfume das flores e faz um gesto delicado, pedindo silêncio. Em seguida, dá início a mais uma aula, dizendo:

- Vocês são as minhas filhas do coração! As minhas filhinhas queridas, os meus mimos, as minhas princesinhas! Então... assistiram ao meu vídeo? Treinaram bem essa última lição? Maria Lúcia, mostre-nos como se encanta uma serpente...

Marcadores: , , ,

3 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]



<< Página inicial